Não chorou. Assim que David Valenzuela saiu do ventre de sua mãe, por uma cesárea de emergência, ele não chorou. Sua mãe, Sara Díaz, logo se deu conta disso e estranhou.
Ela pediu que mostrassem seu filho. Foi então que o médico disse as palavras que nunca esqueceu, mesmo 30 anos depois:
“Sara, o menino está um pouco mal. Ele se asfixiou ao nascer”.
David Sebastián Valenzuela Díaz é um homem com senso de humor, que sorri com frequência e pede explicações de tudo. Ele gosta de desafiar seu interlocutor. Faz perguntas que exigem inteligência nas respostas. Pede explicações até de detalhes. Mas jamais o faz de maneira brusca. David Valenzuela é uma pessoa amável, um tipo caloroso.
É magro, de cabelo escuro e sobrancelhas grossas.
Quando precisa se mover, as coisas são mais difíceis. Ele caminha firme, mas a seu modo: levanta rápido a coxa e a panturrilha, e dobra o joelho antes de apoiar o pé outra vez no chão. Primeiro uma perna, depois a outra. Assim, com paciência, como se estivesse marchando, segue seus passos.
Quando conversa, é preciso ouvi-lo com atenção, sem apressá-lo. Fala devagar e tem dificuldade de vocalizar algumas letras.
Suas palavras às vezes podem sair engasgadas. Seus movimentos nas pernas e nos braços nem sempre são fluidos. Mas sua mente é veloz.
Sara Díaz é de Copiapó, no Chile. Aos 18 anos, mudou-se para Antofagasta, para estudar Pedagogia em História. Lá conheceu Francisco Valenzuela, que era da Força Aérea. Eles se casaram, formaram família e Sara engravidou. Uma gravidez sem problemas, ela conta.
Tinham concordado que o bebê nasceria em Copiapó. Quando tinha oito meses e uma semana de gravidez, enquanto fazia exercícios num consultório, Sara teve um sangramento no nariz. Sua pressão disparou. Orientaram que repousasse, mas ela não melhorou. Nesse mesmo dia, ela foi internada e preparada para uma cesárea de emergência.
“Ao aplicarem a anestesia, a pressão foi ao chão”, lembra Sara. “Por isso ocorreu o problema com David. Porque quando há menos pressão, há também menos oxigênio no corpo. Ouvi os médicos discutirem antes de tirarem o bebê. Um dizia que o bebê estava sofrendo; outro dizia que eu também estava em risco”, lembra Sara.
David Valenzuela nasceu a 20 minutos para a meia-noite de 11 de setembro de 1986; e não chorou. Por causa da asfixia ao nascer, teve uma nota baixa no teste de Apgar, exame clínico que avalia a vitalidade de um recém-nascido. O filho de Sara somou entre 2 e 4 pontos. O normal é a partir de 7.
Com o passar das horas, começou a reagir. Respirou sozinho. Começou a mover-se. Mantiveram-no vários dias na incubadora; e o neonatologista aconselhou Sara que o observasse pelos meses seguintes. Disse a ela que a asfixia tinha sido considerável.
Sara se dedicou à tarefa de observar seu filho. E começou a notar coisas: que ele não chorava de fome ou frio; que não podia se sentar, pois o corpo caía para um lado; que quando ela pegava seus braços, ele se levantava em posição rígida. Depois de consultar vários médicos, um neurologista infantil em Santiago (do Chile) foi direto, disse que o menino tinha uma lesão que afetava todas as suas extremidades e sugeriu que fosse imediatamente submetido a um processo de reabilitação. David tinha 1 ano de idade.
Sara Díaz se lembra: “Eu perguntei se o menino ia caminhar, e o médico me disse que a pergunta certa era se ele ia se deslocar de alguma forma, e ele acreditava que sim. Perguntei se ia falar. Ele me disse que a pergunta certa era se ia se comunicar, e ele acreditava que sim, porque era um menino cheio de vida”
David Valenzuela é inspirado. Qualquer história, qualquer pensamento, ele conta com um pouco de poesia. Como quando se lembra da infância em Copiacó, com sua mãe e uma tia lhe ensinando as cores, as letras, os números, as figuras geométricas. Ele tinha sonhos em que era piloto de avião.
“Me custou a entender este sonho. Demorei 20 anos para entendê-lo. Porque no final das contas o avião sou eu, e tenho que batalhar. De uma ou de outra forma sou o piloto. Eu conduzo este corpo e devo ultrapassar seus limites; ou seja, voar. Sempre tive consciência da minha deficiência e no final entendi porque sonhava com um avião: porque meu espírito deve ser livre. Meu avião é meu espírito, que deve voar.
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Ele entrou para o colégio aos 7 anos, no segundo ano básico. Pelo estímulo recebido em casa, já sabia ler e seu nível de matemática – sua matéria favorita – correspondia a de um aluno do sétimo ano. Como na escola não permitiram que sua mãe o acompanhasse, Sara contratou uma assistente para que ficasse com ele nas horas escolares. O menino falava com muita dificuldade, não caminhava sozinho – só faria isso ao completar 13 anos – e não escrevia. Precisava de alguém a seu lado para o ajudar a se locomover, tomar notas, que o levasse ao recreio e lhe desse a merenda.
Terminou o básico com média 7. Sua mãe não quis que fosse dispensado de nenhuma matéria, nem mesmo educação física: desenvolveram para David uma rotina especial – sem corridas ou obstáculos – pela qual era avaliado. Os êxitos acadêmicos se repetiram na escola Mercedes Fritis, de Copiapó, onde terminou com 6,9 e prêmio de melhor aluno. Nesses anos, teve o acompanhamento de uma assistente para fazer o que o corpo de David não era capaz.
David Valenzuela passou anos pensando o que queria ser na vida: físico. Sua mãe, que achava que uma carreira em humanas seria mais fácil para um deficiente, não conseguiu dissuadi-lo. A decisão estava tomada.
Quando seu filho estava no último ano do colégio, em 2004, viajaram a Santiago e chegaram ao campus San Joaquín da Universidade Católica (UC). Ali funciona a Faculdade de Física. Tiveram uma entrevista com o diretor de ensino, Rafael Benguria.
A mãe expôs suas apreensões. Especialmente pelos trabalhos de laboratório, que requerem habilidades motoras refinadas. Benguria a tranquilizou: David seria muito bem-vindo. E com relação aos laboratórios, o acadêmico foi prático: ali os trabalhos eram feitos em duplas; e David podia ser o que pensava e o outro, o que executava as funções.
No ano seguinte, David conseguiu a pontuação na PSU (equivalente ao vestibular brasileiro) para entrar em Física na UC e se tornou o primeiro deficiente a cursar a carreira na universidade.
Seu pai ficou em Copiapó; ele e sua mãe se mudaram para Santiago. Alugaram um pequeno apartamento nos arredores do campus, o mesmo em que vivem há 12 anos. E não era apenas isso. Sara se tornaria as mãos que David precisava – pois ele não pode usar as suas – para seguir seu sonho de se tornar físico.
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David Valnzuela desenvolveu uma noção própria de felicidade. Sua mãe diz que David acorda todo dia feliz, que não reclama de nada, que sempre devolve um sorriso.
Ele diz que é pelo seguinte: “Ser feliz é uma decisão, não algo que ocorre às vezes. Ser feliz é aprender a navegar pelas estrelas. A gente normalmente busca o dia, o sol, e se desespera com a escuridão. Mas a pessoa realmente feliz olha para as estrelas e segue caminhando. A felicidade não é uma emoção, é um estado de consciência. É libertar-se de tudo. É igual à chuva, à noite, ao inverno. Eu sou feliz porque decidi sê-lo. Aprendi a navegar na noite, entre as estrelas”.
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Na universidade, David Valenzuela não precisou mais de assistentes que o acompanhassem às aulas. Esse papel foi assumido por sua mãe, autorizada pela UC, porque era quem mais conhecia seu filho, quem melhor sabia guiá-lo e que cuidaria de seu estado físico. Nesse último quesito, era insubstituível. Desde que seu filho era criança, Sara fez todos os exercícios aconselhados por terapeutas. Chegou a comprar um atlas da anatomia humana.
“Para estimular sua boca tinha que fazer movimentos circulares, porque os músculos dali funcionam dessa forma. Para falar, são usados 32 músculos diferentes”, diz, como especialista.
Durante os cinco anos de estudos de graduação universitária de seu filho, Sara foi com ele a todas as aulas. Eles se sentavam juntos, sempre na frente. Ela anotava o que os professores escreviam no quadro negro, enquanto David escutava o que era explicado.
Sara escrevia; David prestava atenção. Sara conferia fórmulas, sinais e números que não entendia; David – que é rápido para os cálculos mentais e tem uma memória privilegiada – resolvia os exercícios de cabeça. Sempre tinha o resultado antes que sua mãe terminasse de escrever.
“Eu fui as mãos de David. Anotava tudo, que é o que fazem as mãos, embora não entendesse. Também não me esforcei para entender; não queria que o meu conhecimento interferisse no do meu filho. Me limitava a escrever o texto do quadro e, nas provas, a anotar o que David me dizia. Ele era o cérebro”, disse Sara.
David concorda. “Na prática, foi assim. Eu prestava atenção, ela escrevia. O que não quer dizer que ela não entenda. Quando alguém quer entender, entende.”
Mãe e filho assistiram juntos às aulas de cálculo, álgebra, geometria, mecânica clássica, equações diferenciais e teoria eletromagnética, entre outras. David terminou o curso com 6,1. Entre os “top 10” de sua geração.
Em 2011, David começou seu doutorado em Física. Nos cinco anos seguintes, cada vez que tinha uma aula, sua mãe o acompanhava. Sempre da mesma forma: ela escrevia, ele escutava. Terminou em junho do ano passado, com nota 7 em sua tese. Hoje está se candidatando a um pós-doutorado, que pode ser em Valdívia, ou no México.
“Ou onde quer que seja”, diz David. Sua mãe disse que o acompanhará. Que é um compromisso. Que estará com ele até que seu filho consiga ter uma vida independente num lugar com as comodidades necessárias à sua deficiência.
“Ainda que…”, diz Sara, antes de respirar fundo e continuar. “Ainda que acredite que sempre vamos viver juntos. Tenho minha vida feita com ele. Nunca me rebelei nem perguntei a Deus por que comigo. Eu me sinto abençoada com o meu filho”.
Entre os pensamentos inspirados de David, não pode faltar um sobre a física:
“A física nasce de contemplar a natureza. Mas hoje, que aula de física inclui contemplar a natureza, pelo menos um dia? Nunca me levaram para passear numa aula de física. Sempre foi como a matemática, mas isto não é física. Tem que sair para contemplar a natureza, daí surge tudo. Se isto é esquecido, a física se torna puro número. Melhor sair para passear, olhar o céu, olhar um pássaro. Isso é física para mim.”
Algo disso está na dedicatória que fez em sua tese de doutorado. Um parágrafo que faria alguns colegas torcerem o nariz, mas que deixou David Valenzuela feliz, e que diz isso:
“Ao pasto, às plantas, por me dar o descanso quando estou esgotado. Aos animais, por alegrar-me a cada dia. Graças à Terra, por me ensinar que depois de cair no chão, aprende-se a se levantar. À água, por me ensinar a flutuar, a me ajustar, a me expressar sem medo. Ao ar, aos ventos, por me ensinar que grandes mudanças são originadas por ações pequenas, imperceptíveis, mas constantes. Ao fogo, por me ensinar que nada é mais poderoso que a vontade. E como diz um trecho do poema ‘Invictus’, atribuído a William Ernest Henley: ‘Agradeço a quaisquer sejam os deuses por minha alma inconquistável'”.